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História de um ex-combatente: Um testemunho de sofrimento e bondade na Guiné
Suor, sangue e lágrimas. A expressão, tão bem conhecida e que tantas vezes soa a cliché, ganha outra relevância ao servir para resumir a história de Avelino Silva na Guerra do Ultramar que, apesar de aterradora, tem um final feliz. “Posso dar graças a Deus, que estou vivo e sou saudável”, desabafa, no fim de 40 minutos a partilhar com o NT um testemunho que é como um fardo muito pesado que este ex-combatente vai ter de carregar até à morte.
Entrar na guerra na flor da idade sem qualquer experiência a manusear armas, assistir à morte de colegas e de cidadãos que se recusavam lutar contra a própria comunidade onde estavam inseridos e salvar-se da morte após oito dias de agonia. Estes são episódios traumáticos que, apesar de não terem provocados feridas na pele, atingiram o coração e ainda atormentam o pensamento no momento da recordação. Episódios que Avelino Silva nunca mais esquecerá depois de ter sido mobilizado para a Guerra do Ultramar.
Após recruta em Vila Real, especialidade em Chaves e mobilidade para Abrantes onde esteve meio ano, foi para a Guiné em rendição individual em 1969 para render um indivíduo que tinha falecido na Companhia de Caçadores 2406. E logo a viagem correu mal para Avelino, que enjoou no barco e ainda se viu a contas com os “maiorais” que descobriram que o porão tinha sido assaltado. “Roubavam tudo, desde garrafas de whisky a volumes de tabaco e distribuíam por todos. Uma noite, deixaram o oleado que cobria caixas de fósforos, o vigia da noite viu aquilo levantado e deu o alerta. Nas primeiras horas da madrugada, com muita chuva, fomos obrigados a ir para a proa e despejar os nossos sacos. E quem tivesse caixa de fósforos era dado como autor do assalto. Alguns ainda conseguiram atirá-las ao mar, mas eu não tive sorte. Fui apanhado e o castigo era uma comissão. Estive mesmo à rasca, porque tive de ir responder a Bissau, com indivíduos armados ao meu lado. Mais tarde, tive a sorte que o Salazar morreu, pois veio uma amnistia e eu fui safo”, contou.
Mas este episódio não é nada comparado com o que Avelino passou quando chegou à Guiné. Sem “qualquer experiência de guerra” deu por si em zona de combate. A primeira vez foi “a meio de um percurso no Rio Geba”. “Era tiros por todo o lado”, relatou. Chegado ao quartel “Os Tigres do Saltinho”, foi inserido num pelotão e, novamente, destacado para a zona de combate. Teve a proteção de um outro soldado da Trofa, que o salvou quando, ao tentar refugiar-se numa árvore, expôs-se ao inimigo. “Fiquei mesmo de frente para ele, os tiros vinham de todo o lado, os frutos caíam da árvore”, recordou.
O episódio não foi esquecido e no dia seguinte foi relatado ao capitão, que ordenou que Avelino tivesse um treino de guerra. Como não sabia manusear as armas, quando foi desafiado para disparar uma kalashnikov, a arma “virou para cima” e quase o fez cair de costas. Após o treino, foi novamente destacado para a zona de combate e os “momentos tristes” sucederam-se: “Muitas mortes de colegas, muitas emboscadas, muita miséria”.
O período mais negro
Um dos períodos mais negros da participação de Avelino Silva na Guerra do Ultramar passou-se em Sogá, quando foi destacado para trabalhar na reconstrução de um quartel que serviria para “derrubar Amílcar Cabral e Sékou Touré, presidentes de Conacri”.
“Felizmente, hoje em dia já se pode falar disto, mas na altura, quando voltamos a Portugal, não podíamos dar uma palavra do que tínhamos visto. Inclusivamente, fui investigado pela PIDE e um colega meu de Famalicão, por dar com a língua nos dentes, chegou a ser preso”, afirmou Avelino.
O ex-combatente refere-se ao episódio em que muitos locais de Conacri foram atraídos pelo exército português “com a promessa de trabalho, salário e alojamento”, mas na realidade “eram obrigados a lutar” contra a própria comunidade. “Assisti à morte de vários homens que se recusavam combater contra familiares e amigos”, relatou Avelino Silva que, emocionado, contou que se uns “eram executados no momento”, outros “eram lançados ao mar depois de amarrados e colocados dentro de sacos”.
O sofrimento traz bondade
Passados tempos, quando trabalhava numa pista de obstáculos, Avelino sentiu que o paludismo, doença que o atormentou quase todos os meses em que esteve na Guiné e que se caracteriza por febre que aumenta se não for tratada. “Como estavam a socorrer um homem que caiu e partiu a perna, esqueceram-se de mim e quase fiquei inconsciente. Finalmente, quando me levaram para o destacamento, um colega meu enfermeiro percebeu que a doença já estava em estado avançado e deu-me uns comprimidos. Depois, disse-me para eu pegar num garrafão de água que estava junto a mim, mas este estava ao lado de outros que continham outras substâncias. Quase a desfalecer, peguei no que calhou e falhei. Ingeri álcool. Logo comecei aos berros e enrosquei-me no chão cheio de dores. Deram-me azeite para eu vomitar e estive oito dias entre a vida e a morte”, contou.
Mas foi neste momento de sofrimento que Avelino, também refugiado na fé em Nossa Senhora e S. João de Brito, testemunhou a bondade de muitos locais que o viam com carinho. “Eu tinha liberdade para lhes fornecer comida e as crianças gostavam de brincar comigo e não me largavam. Quando souberam que eu estava doente, vieram ao meu encontro para saber o meu estado de saúde e davam-me ovos, pintainhos, mangas, laranjas… com aquilo, um colega meu, o Ferreira, começou a fazer-me comidas leves e eu comecei a recuperar”, recordou.
Regressar com a “ficha limpa”
Os últimos tempos na Guiné ficaram marcados por um incêndio num quartel e pela abnegação de Avelino, que ajudou a reconstrução, merecendo uma espécie de louvor do comandante. Logo depois, ganhou a simpatia da esposa deste que, “emocionada” com a história de vida de Avelino, mexeu os cordelinhos e fez com que o soldado regressasse a Portugal “com a ficha limpa”. “Todo o passado foi passado. Tive um desfecho bom, porque tudo terminou bem”, afirmou. Os primeiros tempos em casa não foram fáceis para Avelino, a contas com traumas de guerra, mas o tempo ajudou a “cicatrizar” as memórias.
Quanto à Guerra onde esteve envolvido, considera que “não teve sentido nenhum”. “Para mim valeu zero. Se disséssemos que houve um motivo válido, mas para mim não. Tantas mortes, tanto tempo lá passado para quê? Tudo (colónias) voltou a ser entregue”, concluiu.
Reportagem realizada por Cátia Veloso, em 2016
Leia em www.onoticiasdatrofa.pt
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